Como surgiu este desporto na tua vida?
Desde nova que fiz desporto mas não ligava a musculação nem a ginásio. Pratiquei ballet e natação federada a nível de equipa mas não conquistei nenhum prémio notável. A partir do meu 5º, 6º ano comecei a não gostar de desporto porque o único momento em que fazia desporto era nas aulas de Educação Física e os desportos eram coletivos e eu não era boa a esses desportos. Aliás, era a típica rapariga que inventava desculpas para não fazer aulas, até que cheguei a um ponto em que disse que tinha de mudar e comecei a fazer exercícios em circuito em casa; um bocado por obrigação para mudar e um bocado pela minha mãe que andava no ginasio e já percebia de musculação. Mas o que eu gosto da musculação é ser um desporto individual. O meu preparador pode-me ajudar, o meu namorado pode-me dar incentivo a treinar mas dependo de mim. Em cima do palco a culpa, se eu falhar, é minha. É isso que eu gosto.
Tens referências nacionais ou internacionais neste desporto?
Sim, claro. Sem esquecer a nossa pro Elsa Pena, a Maria Pinto que também se tornou pro este ano e outras profissionais como a Angélica Teixeira.
Tiveste alguma dificuldade em entrar no desporto por ser mulher?
Por ser mulher nós parecemos sempre aquele extraterreste na sala de musculação. Nunca ninguém está à espera de ver uma rapariga a treinar musculação como eu treino. Eu treino num ginásio de competição de powerlifting onde há uma ou duas raparigas da minha idade, outras mulheres nos seus 40 e, no máximo, somos se calhar oito de público feminino a comparar, se calhar, com 40 de público masculino. Eu não me importo de ser a única, às vezes sou a única na sala de musculação. Mas parece que faz diferença aos outros que ficam a olhar para nós como se fôssemos extraterrestes. Ninguém está à espera de ver uma rapariga ou mulher numa sala de musculação a treinar musculação. Nesse sentido senti, não dificuldade, mas nem sempre é bonito nem feliz ver certos olhares ou certos comentários por ser rapariga e estar a treinar com pesos. Mas sempre gostei de fazer diferente, portanto, para mim...
Estás a estudar, a treinar... Como concilias isso tudo?
Bem, não é fácil. Às vezes o que fica por fazer é dormir. Temos que abdicar de certas coisas, por vezes abdico de horas de sono. Não durmo 2h por dia não, no mínimo 6, principalmente durante uma preparação. Ter que fazer cardio em jejum, fazer cardio antes de dormir, estudar, treinar, preparar refeições, ter muitas vezes funções extracurriculares, por exemplo, sou presidente do carro da queima das fitas e muitas vezes fiz turnos em convívio, fazer e preparar reuniões... Todos os domingos eu planeio a minha semana e aproveito muito bem o meu tempo. Se tiver furo numa aula aproveito esse tempo para adiantar tarefas. O segredo é organização e confesso que, quando tinha menos coisas para fazer, como por exemplo no meu 1º ano em que estive lesionada e impedida de treinar, era mais desleixada e deixava tudo para a última. Agora sei que tenho de fazer mais cedo, não deixo as coisas arrastar porque sei que o meu tempo vai estar ocupado. É melhor ter muitas coisas para fazer do que ter só uma porque temos que nos dividir e aproveitar muito mais o dia.
Portanto és tu que preparas as tuas refeições e as tuas marmitas?
Eu faço tudo. Ao domingo à hora de almoço vou para Coimbra, vou às compras e faço comida até quarta feira. Quarta tenho um furo muito grande de aulas e tenho tempo para cozinhar para o resto da semana. Algumas refeições preparo na hora como o meu pré-treino que são papas ou as minhas panquecas de manhã.
Dá-nos uma ideia da tua dieta de preparação.
A minha dieta em fase de perda de massa gorda, o cutting, ou a dita preparação para a prova é mais restrita. A dieta em si era muito à base de carnes limpas como o frango e pescada. Os únicos hidratos que consumia era arroz e batata doce e nem sempre tinha hidratos mais complexos. Os vegetais foram sempre mantidos ao longo da minha preparação. Frutas não consumia mas isso depende sempre de atleta para atleta; eu não tinha fruta na minha dieta. Era essencialmente à base de proteína mais elevada como claras de ovo, pescada, frango e cheguei a ter bacalhau. No cutting optamos por energia mais complexa, proteínas mais limpas e os hidratos estão mais restringidos nesta dieta.
Carne vermelha não?
Carne vermelha nessa fase não. Apenas na fase de ganho de massa muscular porque tem mais gordura. Eu agora estou na off season que é uma fase de melhorar certos aspetos que tenho para melhorar; poder comer mais, dar energia ao meu corpo, construir músculo para depois quando estiver na fase de perda de massa gorda o músculo estar melhor. Até porque numa fase de preparação, o défice calórico não é suportável por muito tempo principalmente para nós mulheres.
Fala um bocado das cheat meals. Tu fazes?
Sim, eu faço quando o meu preparador me manda. Nesta fase tenho uma cheat meal por semana, ou seja, uma refeição livre onde posso comer o que eu quiser. Se me apetecer comer um hambúrguer como, se me apetecer uma pizza como. Uma cheat meal não tem de ser propriamente fast-food, pode ser simplesmente algo que não esteja na dieta. Eu cheguei a fazer uma cheat meal em que comi salmão porque não o tinha na dieta e era o que me apetecia. A ideia da cheat meal é, principalmente quando o nosso corpo está em défice calórico nessa fase de cutting e o nosso metabolismo acaba por se habituar a isso e fica mais lento e o processo de perda de massa gorda acaba por desacelerar, darmos um intake calórico, o que vai acelerar o metabolismo e depois podemos voltar às calorias anteriores e o nosso metabolismo vai estar mais rápido e vai continuar aquela perda de massa gorda. A cheat meal tem um valor tanto pscicológico para nos libertar da dieta restrita e focada que é um período muito frágil e complicado, é preciso muita destreza mental, como a nível de metabolismo. Para mim a conotação cheat meal é um pouco negativa, prefiro chamar-lhe refeição livre, é mais positivo. Por exemplo, na minha preparação, tive 4 semanas sem fazer uma única cheat meal até que o meu preparador me disse para fazer uma. Eu fiquei assustada a pensar "Agora? Estou tão perto da prova, vou engordar" mas não. O nosso corpo é mesmo fantástico e apesar de ter medo de estragar as coisas o importante é confiar.
Quem é o teu preparador? Há quanto tempo estás com ele?
O meu preparador chama-se João Silva. Estou com ele há mais ou menos um ano.
Qual é a fase que mais te custa na preparação?
É assim, todas as fases são fáceis e são difíceis. Não gostava da fase de bulking, quando tinha de comer muito, a empurrar comida, andar sempre cheia, maldisposta, e pensar "vou ter que comer outra vez". Acordar mais cedo por saber que tenho mais horas para comer ou, como cheguei a fazer, acordar só para comer. Eram só quatro refeições mas era tanto volume de comida por cada refeição que tinha que distribuir muito bem pelo meu dia. Essa parte custa mas acho que cada fase tem os seus pontos positivos e negativos e acabam por ficar muito equilibradas. Numa fase quando tenho mais calorias consigo puxar carga como gosto, ando mais bem disposta mas também ando mais enjoada. Na fase de perda de massa gorda o problema é mesmo o cansaço que começa a pesar muito. Nas duas semanas antes da prova é preciso muita força e a mente comanda tudo e, por vezes, é a nossa maior inimiga mas também é ela que nos faz não desistir.
Tens a tua grande força de vontade mas também tens outros apoios. Quem são?
O meu namorado foi o meu maior apoio. Foi o meu psicólogo; ajudou-me e chamou-me à razão. Também pessoas no Instagram que me deram muita força e ajudaram. Estar a fazer cardio em jejum e ler certas mensagens de apoio dava-me força para fazer mais 20 minutos. Mas, sem dúvida que o meu namorado foi o meu maior apoio.
O que sentiste quando subiste ao palco?
Aquela manhã, aquele dia foi todo muito confuso para mim. Sou sincera, quando subi, a minha cabeça estava limpa mas eu estava muito feliz ali. Não dá para descrever, dá para aproximar, sentia-me a mostrar o meu trabalho e estava feliz por isso. A partir do momento em que subi ao palco pensei que aquele era o meu momento, tenho que me mostrar, toda a pescada que comi vai valer a pena agora! (risos) Nos dias antes estava com muito receio. Aliás, no dia anterior sonhei que caía no palco e que ia chegar atrasada... Estava ansiosa mas a partir do momento em que entrei no recinto, no backstage parece que ficou tudo lá fora. Fiquei muito admirada e acho que foi por isso que percebi que gosto mesmo disto. Eu estava mesmo a divertir-me e queria falar com toda a gente, ouvia música e cantava, fazia tudo e mais alguma coisa, estava muito feliz. Eu reparava que as outras raparigas estavam muito mais nervosas que eu; não sentia as pernas a tremer, estava perfeita, estava mesmo não sei, confiante de mim e foi isso que me ajudou de certa forma. Se estivesse nervosa com as pernas bambas, ia chegar ao palco e não ia correr tão bem. Acho que o importante é que estava a ser feliz e tinha noção que naquele dia ia perceber se gostava mesmo disto ou se nunca mais o iria fazer. Porque quem faz isto mais que uma vez é mesmo porque gosta. Conversei com algumas raparigas que me disseram que nunca mais iam fazer isto porque é muito dinheiro, muito cansaço e eu só pensava que tinha acabado de sair dali e só queria voltar para lá outra vez. Vi algumas raparigas a desistir à minha frente, pintadas, com biquíni posto e não subiram ao palco. Acabaram por desistir e eu fico um bocado triste. Mesmo que eu perdesse em todas as categorias, ficasse em último, nunca iria desistir, foi um sacrifício tão grande, mesmo dos meus pais e das pessoas a aturarem-me - porque não é facil - e fiz mesmo muito sacrifício, abdiquei de muito para estar ali naquele dia, não era capaz de desistir, não estava na minha mente. Chegamos a um ponto em que estamos por tudo e não vamos desistir.
Mas isso também tem a ver com a capacidade que tens de acreditar em ti mesma...
Mas eu não acreditava em mim mesma. Eu, às vezes, depois de ter ganho pensava "se calhar a outra estava melhor que eu". Cheguei a ir ao Instagram de outras atletas que sabia que iam competir contra mim e comparava-me, muito. O meu namorado dá-me muito na cabeça por causa disso. E uma coisa é dizer que vou competir e faltam 5 meses ou 2 meses, outra coisa é estar lá. Aliás eu não acreditava que estava lá, que tinha sido capaz de chegar lá. Achava que algo ia acontecer a meio do caminho para me impedir. Mas consegui mesmo. É óbvio que depois de ganhar comecei a ganhar confiança, comecei a acreditar mais em mim, a pensar "se calhar até consigo fazer alguma coisa com isto (risos). Nessa perspetiva é acreditar em nós.
Se calhar isso deu-te alguma segurança, a falta de nervosismo e estar lá por prazer.
Sim, não foi aquela pressão, porque eu não ia mesmo com expetativas. Consegui chegar aqui, fiz isto por mim, porque queria. É óbvio que toda a gente que sobe ao palco quer ganhar e quem diz que vai pela experiência... Ninguém se submete a tanto esforço por uma experiência. Nós estamos ali num extremo, é muito sacrifício. Subir a um palco? É muito esforço e toda a gente quer ganhar e obter uma boa classificação. Claro que eu queria ganhar mas também era realista. Ia competir com outras raparigas mais velhas que competem há anos, que já foram a competições internacionais, e a mim ninguém me conhecia, uma miúda de 19 anos sem equipa, uma total desconhecida.
Então e quando ganhaste? Como foi a sensação?
Bem eu não estava a acreditar. Quando ganhei a primeira vez, o Bikini Junior é uma categoria mais acessível para mim porque estava a competir com raparigas da minha idade, ou seja, não tinha aquela diferença de maturidade muscular porque a idade e os anos de treino importam muito a nível de densidade muscular, mesmo maturidade, e isso nota-se num corpo. Acreditava conseguir ficar no top 3 e quando ganhei não queria acreditar, foi a primeira vez que ganhei e foi mesmo surreal. Só via o meu pai, atrás da mesa dos jurados, com o telemóvel a gravar mas a chorar! Foi incrível. Aliás, aquele dia, mesmo passado uma semana, eu olhava para as taças e pensava que eram minhas mas não associava que tinha ganho. Não estava à espera de ter ganho nenhuma das categorias mas ganhar o Overall, ser campeã absoluta de uma prova, é muito importante, foi uma alegria muito grande. Isto era o máximo que eu podia ter ganho. Claro que era o meu sonho mas tinha consciência que era muito difícil e que teria de derrotar as outras 40 raparigas que estavam a competir.
Falaste no teu pai. Os teus pais sempre te apoiaram?
Os meus pais sempre foram muito presentes em tudo, em todas as atividades e sempre me deram as ferramentas que precisava para continuar. O que mais os preocupava era a nível de saúde mas a minha mãe contou-me que no dia da prova o meu pai disse "bem, espero que ela nunca mais faça isto". Quando ganhei a segunda taça ele já dizia "ela é a melhor. ela foi feita para isto". E, quando ganhei a terceira taça ele já estava a perguntar quando é que eu ia competir outra vez. Penso que, ao ver-me feliz, foi o que realmente fê-lo mudar de ideias. Já a minha mãe, "culpada" por eu começar na musculação, evitava comer certas coisas à minha beira e tentou mudar um bocado a alimentação para não me tentar. A minha mãe via comigo vídeos de raparigas para aprender rotinas, fez caminhadas comigo, ajudou-me muito.
Também mencionaste o apoio positivo das pessoas no Instagram. Recebeste algum feedback negativo?
Por incrível que pareça as pessoas que me conhecem através das redes sociais dão-me mais força do que muitas pessoas que conheço pessoalmente. É óbvio que havia comentários mais negativos mas eu simplesmente carregava para o lado e eliminava. Tive pessoas que vieram de propósito para me ver, pessoas que nunca tinham visto nenhuma competição destas. Uma rapariga trouxe-me bolinhos de Vila Real. Houve pessoas que não me conseguiram ir ver mas mandaram mensagens de apoio. Coisas muito bonitas, mensagens muito queridas como "olha eu não percebo nada disso mas vi o teu esforço e tu mereces". Outras disseram que as inspirei a competir ou a começar uma nova dieta. Para mim é mais importante inspirar as pessoas e fazê-las acreditar nelas próprias e lutarem por elas do que darem-me uma taça. As pessoas que me deitavam mais abaixo eram mais próximas de mim e isso é triste.
Mas consegues transformar essa tristeza em força?
Sim, consigo. Uma das coisas que me fazia muito continuar era o facto de eu querer provar a essas pessoas que conseguia. Pensava "eles acham que eu não consigo mas eu ainda vou ganhar e eles vão ver. Vou continuar a postar fotos que é para perceberem mesmo que eu ganhei"! (risos)
As poses que fizeste em palco foste tu que as escolheste?
A rotina individual, quando a atleta chega e se apresenta ao público a primeira vez, é escolhida por nós. Vi várias na internet de atletas que admiro e inspirei-me mas tem de ser ao nosso jeito, tem de ser natural, se não bloqueamos. Se saiu como treinei em casa? Não. Se saiu bem? Saiu! (risos) Mas nos quartos de volta comparativos aí sim, temos que estar todas de maneira igual porque se não tiver na mesma posição que a atleta ao meu lado, o júri não consegue comparar os parâmetros certos então aí as poses são obrigatórias e decididas pela federação em que se compete que no meu caso foi a IFBB.
E o biquíni que usaste, foste tu que o decoraste?
O biquíni foi feito pela Maria Pinto depois de eu escolher a cor. Os cristais também foram postos a meu gosto.
Que tens a dizer a quem está a iniciar neste desporto?
Bem, tenho que dizer que se tomou a decisão de competir, primeiramente, parabéns; segundo, não vai ser fácil. Este caminho é muito atribulado, tem muitos altos e baixos, vamos falhar muitas vezes e vai haver dias em que vamos falhar uma refeição; vai haver dias em que vamos acordar tarde e não vamos conseguir fazer o nosso cardio; dias em que vamos sentir que não devíamos ter saído da cama; vai haver dias em que vamos dizer que é que eu vim aqui fazer ao ginásio, este treino foi uma porcaria; e vai haver dias em que vamos dizer meu deus, este é o melhor treino que fiz e nem sequer estou com hidratos. Vai haver dias assim, um caminho muito longo e muito sozinho. Quem está a começar começa com dez pessoas à sua volta e chega ao fim com uma ou duas. Muita gente não vai perceber, vão criticar. Pensam que somos egocêntricos e que mudamos só porque temos uma dieta a cumprir. As pessoas têm que estar prontas para isso; vão deixar muita coisa para trás. Por exemplo, deixei de sair com os meus amigos, de jantar com eles. Gostava de ter ido mais vezes ao cinema com o meu namorado mas ia atrasar as minhas horas de sono, gostava de ter jantado fora com ele mas só podia comer a minha marmita. E muita gente não entende. Mas as pessoas têm que se perguntar "Estou a fazer isto por mim ou pelos outros?". Se é para mim, eles não entendem, o problema é deles. Queres-me apoiar ótimo, não queres podes ir embora. E uma coisa que senti muito neste processo é que as pessoas não te ligam nenhuma e chamam-te de egocêntrica e falsa mas depois quando ganhas é "parabéns, adorei ver-te". No início é isso que mais custa e entristece mas, com o tempo isso torna-nos mais fortes. E a preparação libertou-me de muita coisa que eu não precisava e quem vai começar este processo tem que estar consciente disso. São 60 dias e, nesses 60 dias, vão haver 2 treinos bons, 1 dia feliz e noutro dia uma pessoa vai-te elogiar. E os outros todos? És tu, tu e tu. As pessoas têm que estar prontas para lidar com muita coisa e ouvir muita coisa, ser muito fortes e suportar muitos dias maus e lembrarem-se sempre do objetivo.
E agora, vais continuar a competir? Tens algum objetivo, algum sonho?
Irei competir só em 2019, a prova ainda não está escolhida mas o meu objetivo é com certeza o Pro-card, acho que é o objetivo de toda a gente neste desporto; ser profissional, competir com os melhores. É o meu objetivo, espero conseguir. Se não for em 2019, em 2020. Mas é para isso que vou trabalhar sempre. Trabalho para atingir sonhos, realizei agora um, subir a palco e ganhar, agora vou trabalhar para outro. É como se tivesse uma check list e estivesse a cortar os meus sonhos.
Em parceria com Fábio Pereira